Amanhã é Natal (Conto de Natal)
Filipe Consciência
A convite da Chiado Books, escrevi um pequeno conto de Natal para fazer parte da primeira coletânea de contos de Natal do Grupo Editorial Chiado. A obra, intitulada "Natal em palavras", será apresentada ao público já no próximo dia 15 de dezembro e contará com diversos contos de Natal, incluindo o meu. Com um limite de 500 palavras, deixo-vos o meu conto de Natal, agradecendo o convite da Chiado Books. É com muita satisfação que recebo todos os anos os vossos convites, e é orgulho que vejo os meus trabalhos publicados.
Amanhã é Natal
Andam depressa pela rua, correndo sem destino mas com uma clara missão. Comprar presentes para todos que amanhã já é Natal. Menos para mim. É Natal, mas mesmo nesta altura do ano, permaneço invisível aos olhos de todos. Não passo de uma velha, com roupas velhas e rasgadas, que já devem ter pertencido a alguém novo e bonito. Não passo de uma miserável, sentada à porta daqueles que, quentes no seu lar, nem têm tempo nos seus dias agitados para ir à janela ver quem, gelado, se encosta à parede imaginariamente quente do seu prédio. Daqueles que fingem olhar para o telemóvel, ou para o céu, quando chegam a casa e procuram as chaves que dão acesso a algo que já tive, não tenho, e não voltarei a ter. É Natal. E o máximo que receberei será uma sopa morna feita por alguém que, estranhamente, decidiu usar um pouco do seu tempo para ajudar aqueles que, aos olhos de muitos, nem mereciam um olhar. Porque para muitos, não passamos de uns falhados. Como se a culpa de estarmos na rua fosse exclusivamente nossa. Como se fôssemos uns fracos que deixámos que o destino brincasse connosco ao ponto de nos retirar família, amigos, emprego, casa e comida. Como se gostássemos de passar os dias ao relento, com frio mesmo no verão, com fome porque o estômago nunca se habitua à falta de alimento, e com o constante, penetrante e inquisidor olhar daqueles que passam diariamente por nós e ousam desviar o olhar por um segundo, abanando imediatamente a cabeça certos de que com eles isto nunca aconteceria. Sou um velha, com roupas velhas e rasgadas. Uma velha que sente a dor regressar ao seu corpo sempre que sente o cheiro a álcool, recordando-se, involuntariamente, de tudo a que foi sujeita nas mãos de bêbados que partilham a mesma sina de ter as ruas como casa. Uma velha que já nem na polícia pode encontrar segurança, porque viver na rua não dá direito a isso. Uma velha que há muito deixou de acreditar num futuro, porque o passado e presente trataram de o destruir. É Natal, mas não para mim. Enquanto me perco nos pensamentos, um homem aproxima-se demasiado de mim. Parece querer ganhar coragem para perguntar onde fica o centro comercial mais próximo, para cumprir a missão de comprar presentes para quem não precisa. Mas afinal não. Cheira a roupa lavada. Ao calor de uma casa. À comida servida por baixo de um teto. É tão velho como eu, mas não cheira a miséria. Pergunta se quero passar o Natal com ele. A minha boca, calada há anos, responde em silêncio que sim. Porque não? Mesmo que seja mentira, ou mesmo que apenas dure umas horas, sabe bem sonhar por segundos com uma realidade que há muito deixou de me pertencer. Não passo de uma velha, com roupas velhas e rasgadas, invisível aos olhos de quase todos. Amanhã é Natal. E parece que também vai ser para mim.