Chefs refugiados e um sabor a casa
Filipe Consciência
Versão original do New York Times,
Por Alissa J. Rubin
Tradução da minha autoria
Artigo de 5 de julho de 2016
Ver original aqui.
Chefs franceses e refugiados juntam-se num invulgar festival gastronómico em Paris.
PARIS - Os clientes deste bistrô na margem esquerda do Sena olham admirados para os pratos inesperados que surgem no menu num evento recente: puré de lentilhas laranjas, kebbeh e espinafres; cavala marinada com pimentos doces e tahini; codornizes servidas com freekeh, um grão encontrado no Mediterrâneo oriental.
Tudo muito diferente do servido habitualmente no L'Ami Jean, um bistrô tradicional francês, cujo efusivo Chef e proprietário, Stéphane Jégo, é conhecido pela sua interpretação da cozinha Basca.
Um dos pratos servidos no L'Ami Jean
Mas se naquela noite os clientes tivessem espreitado para a cozinha, teriam visto dois Chefs a preparar dois pratos: Jégo e Mohammad El Khaldy, um Sírio que trabalhou durante 20 anos como cozinheiro na sua cidade natal de Damasco até ser forçado a fugir por causa dos bombardeamentos.
"Cozinhar é o meu trabalho, é a minha vida", afirmou Khaldy.
Ele parecia quase eufórico enquanto olhava para as panelas dele e do Jégo que borbulhavam no fogão do restaurante e alinhava as taças de metal cheias com salsa e coentros, cortados e lavados, prontos para ser usados.
"Estamos a fazer um sabor que é da Síria, mas num estilo francês", disse enquanto Jégo acenava em aprovação.
O restaurante é um dos nove locais que se ofereceram para receber um Chef refugiado para o primeiro Festival Gastronómico de Refugiados em Paris. Khaldy participou juntamente com outros oito Chefs refugiados, convidados por uma organização que trabalhou com o festival gastronómico: Les Cuistots Migrateurs ou Chefs Migratórios.
Les Cuistots Migrateurs é uma arrojada parceria criada por dois intrépidos empresários franceses que queriam alterar a forma como os Parisienses vêem os imigrantes, apresentando aos Franceses o melhor das cozinhas locais dos recém chegados. Os empresários Louis Jacquot e Sébastien Prunier, ambos com 29 anos, procuraram Chefs com experiência entre milhares que recentemente obtiveram asilo em França; depois reuniram um pequeno grupo para criar uma empresa de catering especializada em cozinhas menos conhecidas.
Com três Sírios, um Tchetcheno, um Iraniano, um Indiano, um Etiópio e um refugiado do Sri Lanka (um Afegão e um Tibetano vão ser entrevistados nos próximos dias), os organizadores já realizaram 20 eventos desde fevereiro, incluindo almoços, jantares e buffets.
Louis Jacquot, à esquerda, e Sébastien Prunier, os criadores dos Les Cuistots Migrateurs
Num país onde a narrativa dominante é a de que os refugiados são um fardo para a sociedade e onde a cozinha francesa domina o cenário gastronómico, o projeto oferece uma pequena mas forte contra narrativa, mostrando que os refugiados podem trazer competências e estão cheios de vontade de trabalhar.
"Os imigrantes são vistos como uma luz negativa, como se puxassem um país para baixo, como se não tivessem nada para oferecer, mas na realidade eles oferecem uma oportunidade de trocar culturas, de trazer algo positivo: A cozinha de um local dá prazer", diz Prunier, que é de Montreuil, um subúrbio a leste de Paris. "Isto também faz parte da imigração".
A empresa de catering começou numa cozinha partilhada num espaço subsidiado pelo governo, destinado a promover empresas recém criadas; no verão evoluiu para uma cozinha inserida numa sala de concertos flutuantes no Sena, perto na Biblioteca Nacional de França.
Fariza Isakova aprendeu a cozinhar com a sua avó e mãe, que tinham um restaurante na Tchetchénia
O local chama-se Le Petit Bain e apresenta música do mundo, por isso os seus proprietários estavam recetivos em receber os Cozinheiros Migratórios, acreditando que o seu foco na cozinha do mundo seria uma boa parceria.
Os cozinheiros reúnem-se lá para fazer pratos para os eventos onde servem o catering e as mezzes Sírias (canapés) que são servidas todas as noites num bar exterior no telhado da sala de concertos.
Moaaoya Hamoud, 26 anos, outro refugiado Sírio e antigamente jornalista com experiência na cozinha, faz as mezzes. Fugiu da Síria em 2014, depois de ter sido atacado juntamente com a sua família.
Um prato de pirachkichs no Le Petit Bain
Recentemente numa manhã ele estava a misturar um prato de beringela. A uns poucos metros, Fariza Isakova, 32 anos, refugiada de Grózny, Tchetchénia, que fugiu em 2004 mas só há pouco tempo é que chegou a França, estava e fazer círculos de massa para pirachkichs, que recheava com uma mistura de couves cortadas finamente, cenouras, salsa e cebola. Aprendeu a cozinhar no restaurante da sua mãe em Grózny, a capital da Tchetchénia.
Nenhum dos empresários Parisienses tinha experiência em culinária ou em negócios de comida antes de começarem no catering. São licenciados em faculdades de gestão no norte da cidade de Rouen, onde se encontraram, mas não se conheciam muito bem. Cada um tinha trabalhado vários anos em diferentes negócios, incluindo a Ernst & Young no caso de Prunier enuma empresa de comunicações digitais, no caso de Jacquot.
“Mas sentíamos que faltava algo", disse Prunier. Jacquot disse que os dois "queriam fazer algo mais próximo do coração".
Faaeeq Al Mhana, um refugiado Sírio, que ajuda a preparar e limpar na cozinha do Le Petit Bain
Descobriram então que partilhavam o interesse de trazer para França a comida que tinham experimentado quando viajavam.
Jacquot passou seis meses a viajar pelo Líbano, Índia, Nepal, Tailândia, Laos, Camboja e Vietname, bem como Peru, México e Brasil. Alimentou-se com comida de rua e restaurantes não turísticas, de forma a entender a comida caseira de cada país, porque os carrinhos de comida e pequenos restaurantes têm tendência a ser geridos por famílias, contou Jacquot.
Prunier viveu em Hong Kong, Singapura e Shanghai e aproveitou todas as oportunidades para comer nas casas das pessoas porque lá provava pratos que nunca encontrava nos restaurantes.
Sarah, que não deu o seu apelido com medo de represálias, aprendeu a cozinhar enquanto trabalhava para uma família do Kuwait.
No último Outono foram a uma festa de uma organização sem fundos que trabalha com refugiados onde cada migrante leva um prato. "Havia 15 ou mais cozinhas", disse o Jacquot. "Eram tão coloridas, saborosas, incríveis."
Os dois começaram a pensar: Porque é que não procuramos entre os refugiados que pediram asilo em França (cerca de 19.500 receberam o estatuto de refugiado em 2015, de acordo com o Ministério interior) e encontramos aqueles que são Chefs com experiência?
Prunier e Jacquot disseram que tinham três objetivos. Queriam mostrar aos franceses as cozinhas e culturas daqueles que chegavam às suas costas, mas cuja comida ainda não fazia parte do cenário gastronómico de Paris. Queriam criar trabalho. E, talvez mais do que tudo, queriam começar a mudar a forma como os imigrantes são vistos em França, disse Prunier,
Uma das razões para servirem catering reside no facto dos cozinheiros estarem presentes quando a sua comida é servida e, dessa forma, poderem falar com as pessoas caso estas tenham perguntas, tornando a comida numa forma de partilha de culturas.
"É importante mostrar que isto vem de uma pessoa e que essa pessoa percorreu uma longa estrada para a apresentar: que a comida vem de um local e tradição", disse Prunier.
Apesar de estar a começar a aumentar o pensamento anti-imigração nalgumas zonas de França, Jacquot e Prunier acreditam que a sua parceria pode vir em bom momento porque os Franceses mais jovens viajam bastante e desenvolvem um gosto por comida de sítios remotos.
Moaaoya Hamoud, cozinheiro no Le Petit Bain e refugiado Sírio
Acima de tudo, isso pode ser verdade, mas há sempre exceções, como aprendeu o Chef Khaldy num dos acontecimentos no L'Ami Jean.
O empregado regressou à cozinha com um pedido, dizendo, "A senhora diz: sem amêndoas, pistáchios, nozes ou sésamo:"
Khaldy ficou devastado. Havia nozes em diversos pratos, incluindo sésamo no seu tahini meticulosamente misturado para o peixe; havia pistáchios no seu gelado caseiro para sobremesa.
"Pistáchios, amêndoas, sésamo: É assim a nossa cozinha Síria", disse com tristeza.
Jégo bateu no seu braço confortando-o, habituado aos pedidos dos seus clientes. "Nós conseguimos", disse.